Voa só e tímida, como quem perdeu comboio, e fica no cais,
sem nada saber além de que perdeu. Irá a Sul como eu,
quando lhe sobrar vontade e lhe restar frio.Uma pomba arrulha no telhado, também confusa.
Era já de arrepiar este dia, mas não,
ficam uns belos vinte e cinco graus às doze,
que agora são onze, que mudou a hora,
e estamos todos um pouco tontos e solares.
Eu a andorinha e a pomba.
Aqui nestas águas furtadas,
de trapeira redonda e janela basculante,
passo os meus dias também no céu,
três andares acima das ruas. Daí o sentir-me
algo pássaro, de voo que apesar de baixo é voo,
de pio que apesar de mudo diz. Eu a andorinha e a pomba,
que entretanto se calou, somos, neste telhado,
uma trindade moderna: a andorinha espírito santo inspirador;
a pomba voz de deus;
eu olhando da trapeira filho aqui
posto para testemunhar presenças.
Assim, e pela santidade do dia,
escrevo a linha testamento, nem velho,
nem novo, apenas hoje.
E fico enclausurado na trapeira a ver o
mundo redondo como afinal ele é, esperando
serenamente o frio que virá inexoravelmente.
Vai restar a memória da asa negra, a voz da pomba
cinza e as letras, incolores, essas que não desistem
de se escreverem umas às outras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário